quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

A Teoria do Ornitorrinco

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020 0

Era fim de tarde e o dia findava morno e agradável. Mais um dia de isolamento social, confinados em casa, por conta de uma pandemia preocupante e assustadora. Na varanda, preguiçosamente na rede, não incomum aquela olhadela nas redes sociais para me atualizar, ora nas versões digitais dos grandes jornais, ora nos grupos de afinidade, ora observando as discussões homéricas sobre o governo e uma determinada droga em estudo... Tempos difíceis.

Numa dessas passadas de olhos li uma postagem de alguém próximo que dizia: “Lembro-me bem, estava na 3ª série e a professora me pediu para citar um animal com a letra “O”. Pensei em um animal curioso que vi em uma coleção de livros que tinha em casa, e mandei – Ornitorrinco! A professora com a segurança de anos de estudo e a certeza do que dizia sentenciou: Você está equivocado! Ornitorrinco não é um animal, mas uma especialidade médica.”... Uma confusão até aceitável, Ornitorrinco e Otorrino, mas, um se refere a animal pouco citado e estranhíssimo.

Ainda criança meu filho tinha especial atração por uma miniatura emborrachada de um desses animais, que, quando de férias, compramos em uma praia próxima a Guarapari - ES. O atendente da lojinha de souvenirs ficou surpreso quando ouviu meu filho, de uns 5 ou 6 anos à época, pronunciar corretamente o nome daquele bicho, já que ele mesmo, havia confessado, não conseguira. 

Ganhei um desconto por conta disso.

Meu filho era um entusiasta dos dinossauros, sabia o nome de todos aqueles saurópodes e suas características, mas o ornitorrinco era o diferente da turma e ele queria saber o “por quê” de Deus tê-lo feito daquele jeito...Sugeri que aparentemente foi montado com peças de reposição que sobraram no estoque celestial quando da criação de outras espécies. Não o convenci.

Como explicar?

O ornitorrinco (Ornithorhynchus anatinus) é endêmico da Austrália e um dos dois únicos mamíferos conhecidos que põem ovos. É coberto de pelos com isolamento térmico, uma espécie de sensor ou radar no bico, pênis bifurcado e cloaca, além de outras características exclusivas e tão estranhas quanto o conjunto da obra. A fêmea bota ovos que eclodem em poucos dias, de onde nascem de dois a três filhotes e, como ela não possui mamas, durante a amamentação os filhotes lambem o leite diretamente de poros e sulcos abdominais na pele da mãe.

Desde sua descoberta há 200 anos, o ornitorrinco ainda confunde cientistas, com seu rabo de castor, bico de pato, patas de lontra, pelos cobrindo o corpo e esporões venenosos nas patas. Considerado tão estranho no início, que muitos achavam que se tratasse de uma fraude, e não de um animal de verdade. Mas é! 

Em 1800, os ornitorrincos foram descritos pelo naturalista Thomas Bewick em seu livro História Geral dos Quadrúpedes como “um animal sui generis, com a natureza tríplice de peixe, pássaro e quadrúpede, e não aparentado com nada que nós já tenhamos visto”. 

Anos depois, em 1824, Johann Meckel havia proposto que o bicho podia dar leite e ovos, para pânico dos franceses e britânicos, que até então acreditavam que o ornitorrinco não era um mamífero. Consta que o francês Geoffrey St-Hilaire fez uma brincadeira, dizendo que “se esse animal põe ovos e produz leite, então eu quero ver a manteiga!”.  Jean-Baptiste Lamarck caiu em sonora gargalhada em apoio ao amigo. O mesmo Lamarck que anos depois contestaria Darwin e sua teoria.

A Teoria da Evolução das Espécies de Charles Darwin ainda demoraria três décadas para ser lançada e parte considerável dos cientistas defendia que as espécies haviam sido criadas por Deus do jeito como eram conhecidas naquela época e aquele bicho diferente de tudo, desafiava as preconcepções sobre o tema. 

Se para os cientistas era confuspo imagine para uma criança?

Lembrei-me de algo que talvez ajudasse.

Segundo o livro do Gênesis, no capítulo 6, versículos 14 a 16, Deus deu instruções a Noé para que ele construísse uma Arca, da madeira de gofer, calafetada por dentro e por fora com betume, com as dimensões de 300 côvados de comprimento, 50 côvados de largura e 30 côvados de altura, de tal forma a ter três andares, e reunisse um casal de todos os seres viventes conhecidos e junto com sua família embarcassem nela, sete dias antes do dilúvio.

Não deve ter sido uma tarefa fácil, mesmo com a ajuda do Todo-Poderoso. 

Imagine a trabalheira de separar espaço para todos os animais, providenciar alimento, colocá-los de um jeito a não se ferirem, sem contar em como seria limpar aquilo tudo, a quantidade de fezes, o cheiro... Melhor nem pensar.

Foi um trabalho hercúleo. Mas Hércules já é outra história... 

E assim foi. 

Vieram por etapas. As aves, os mamíferos, os répteis, e todos os outros seres, aos pares conforme sua espécie, perfilados e ordenados, entraram na Arca de Noé e aguardaram o Dilúvio.

“Era o ano 600 da vida de Noé, no mês segundo, aos dezessete dias do mês, naquele mesmo dia se romperam todas as fontes do grande abismo, e as janelas do céu se abriram” e “houve chuva sobre a terra, quarenta dias e quarenta noites” (Gênesis 7, 11-12).

Ainda em Gênesis é relatada a saída de Noé, da Arca, com sua família e todos os  animais, com a premissa divina de que povoassem a terra abundantemente e se multiplicassem...

E eis que de repente, Noé avista o Ornitorrinco.

Imaginei a cena de Noé, exausto com o peso da idade, intrigado e um tanto constrangido, diante daqueles tantos animais, se questionando: “Quando subimos não havia esse bicho aqui?!” 

Quarenta dias e quarenta noites em isolamento, no balanço das águas, chovendo a cântaros, nada para fazer, sem internet, redes sociais, jornais, palavras-cruzadas, nem livros... Toda semelhança não é mera coincidência.

Meu filho já sabia, àquela altura, como os animais se reproduziam. Já havia explicado seguindo a cartilha da abelhinha, da sementinha, essas coisas.

Não foi difícil, com a criatividade aguçada, imaginar que na calada da noite, com o barulho do aguaceiro que desabava lá fora e embalados pelo mar, um “Petit Comité Selvagem” se deu... e que o ornitorrinco seria o fruto de um “affair” desenfreado entre algumas espécies animais, confinados e com os hormônios à flor da pele... 

Havia conseguido de uma forma lúdica, sair daquela saia justa.

Mas, os anos se passaram. 

Hoje meu filho é universitário e, vez por outra, lembramos daquela história da “Suruba” na Arca de Noé. Ainda rimos disso. 

Curioso, é que recentemente, em 2008, li em uma publicação da Revista Científica Nature, sobre a descoberta que o ornitorrinco é uma "mistura genética" de mamíferos, répteis e aves, de acordo com o seqüenciamento do seu genoma.

Pois é, até que minha Teoria da Origem do Ornitorrinco, não estava de toda errada.


(2° Lugar Estadual no Talentos FENAE 2020)
 
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